O Rádio e os primeiros gritos de gol, por Flávio Araújo
O rádio, o grande invento que marcou o início do século passado foi durante muitos anos um órgão estatal e que só transmitia aquilo que o governo desejava.
Isso acontecia nos países onde imperavam governos ditatoriais, mas também a Grã-Bretanha, Inglaterra à frente, teve na BBC sua porta-voz exclusiva.
Esse tipo de rádio subsistia sem publicidade que o sustentasse e no caso da Inglaterra o pagamento da taxa por parte dos possuidores de aparelhos era paga sem que ninguém o contestasse até recentemente.
No Brasil o rádio já nasceu independente com a fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro em 1923, mas também sem publicidade e com pagamento de taxa por aparelho.
Não durou muito esse estado de coisas e a publicidade passou rapidamente a ser aceita para que houvesse realmente progresso no broadcast brasileiro.
Também nos Estados Unidos da América do Norte o rádio nasceu livre e com publicidade ilimitada.
Existem ainda resquícios do rádio brasileiro no tempo da ditadura Vargas e o programa A Voz do Brasil, de transmissão obrigatória até hoje por todas as emissoras do país é a lembrança dos tempos em que a Rádio Nacional, subsidiada, tinha o maior elenco de artistas e era a mais ouvida do país.
Como os sucessivos governos, mesmo nos períodos democráticos, sempre tiveram uma queda para controlar a mídia, como o atual, a Voz do Brasil, muito combatido por seu anacronismo e pela concorrência superior que as emissoras fazem em seus programas informativos continua resistindo e mantendo-se no ar.
Nos países onde as ditaduras cravaram suas unhas com maior profundidade a presença do rádio sempre influenciou o futebol e caminhou ao lado deste fazendo sempre a vontade e seguindo a orientação fundamentalista dos donos do poder.
O HOMEM DE MUSSOLINI NO MICROFONE
Benito Mussolini, o foi o ditador da Itália que mais se aproveitou do chamado rádio oficial para promover as vitórias italianas de 1934/38 nos segundo e terceiro mundiais de futebol.
Tinha uma voz oficial para transmitir os cotejos da “azurra” e é sobre ele que escrevo.
No ano de 1956 fiz a minha primeira transmissão do Maracanã, cotejo amistoso entre Brasil e Itália, vitória brasileira por 2 a 0 e a primeira vez que um microfone de minha cidade natal, onde iniciei minhas atividades, era levado ao grande estádio.
Longe de mim imaginar que alguns poucos anos depois estaria em Milão transmitindo o cotejo onde o Brasil pagaria com a presença de sua seleção a visita da italiana.
Entre as emoções que o cotejo de 1956 me proporcionou estava a oportunidade de conhecer Nicoló Carósio, o locutor oficial de Mussolini e que transmitira os dois mundiais ganhos por seu país em 1934 na Itália e em 1938 na França.
Democrata e adepto de regimes onde o povo era livre não tinha nenhuma simpatia com um locutor notadamente imbricado com os princípios que o Ducce italiano defendeu.
Minha admiração era pelo locutor esportivo que subsistiu ao pós guerra e na verdade nos tempos em que o rádio reinava absoluto o narrador desse espetáculo merecia o mesmo respeito que o grande cantor ou o galã de cinema e teatro mais festejado alcançava junto ao público.
Hoje as coisas mudaram muito pelo extraordinário número de narradores esportivos em quase todos os países, mas principalmente no Brasil onde a televisão vai pouco a pouco fechando o caminho para os narradores de rádio que mesmo assim fazem do mesmo a escola para seu desenvolvimento.
Carósio, lembro-me, sofreu um pequeno acidente ao caminhar em direção à cabine que ocuparia no verdadeiro subterrâneo que se percorria nas entranhas do Maracanã para ocupar uma das poucas cabines de transmissão.
Bateu a testa numa das passagens mais baixas (era um homem magro e alto) e teve que ser medicado e por pouco não conseguiu transmitir o espetáculo.
Contam que Nicoló Carósio foi também quem levou pessoalmente aos jogadores da Itália antes da Copa de 1934 a mensagem de Mussolini simplesmente com estes dizeres: “Vencer ou Morrer”.
Lembro que as transmissões europeias eram muito diferentes das brasileiras, lentas, comentadas e sem o entusiasmo que sempre foi o principal tempero na narração dos profissionais brasileiros.
Mas, não só de Nicoló Carósio viviam os governos ditatoriais.
Em Portugal havia Arthur Agostinho, o locutor oficial da Rádio Nacional de Lisboa e também bastante afinado com o governo Salazar.
Muitos diziam que Arthur era, inclusive, membro da PIBE, a terrível polícia política do governo português.
Arthur, gordo, brincalhão, era uma figura que se fazia notar e sempre recebia os seus colegas brasileiros quando em Portugal com fineza e cavalheirismo.
Alguns dos nossos falavam em congraçamento, outros em estreita vigilância no desempenho de sua função que não era apenas a de narrar futebol.
Mas, ao microfone era antes de tudo um porta-voz do governo narrando jogos de sua seleção ou os grandes cotejos entre clubes de seu país.
Logo após a queda da ditadura portuguesa, a exemplo do Professor Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar, Arthur Agostinho transferiu-se as pressas para o Brasil e com seus amigos do Rio de Janeiro aqui foi se arranjando, mas jamais como locutor esportivo.
Interessante que o português falado no Brasil ganha campo em Portugal, mas a recíproca não é verdadeira.
Wilson Brasil, comentarista vibrante, combativo, deixou o Brasil e foi fazer sucesso no rádio português dentro de sua função, mas isso já depois do término do período ditatorial naquele país.
Na Europa, notadamente nos países do Leste Europeu e onde as emissoras oficiais duraram ainda por mais tempo no pós guerra cada país tinha em geral o seu locutor chapa branca.
Outro narrador que ganhou grande notoriedade e para muitos se portava como figura do governo foi já em época moderna o argentino José Maria Munhoz, com destaque para a Copa de 1978 e vencida por seu país.
Era, porém, diferente já que Munhoz contava com a concorrência de inúmeros outros e o rádio na Argentina tinha o mesmo modelo brasileiro.
No Uruguai o grande nome das narrações esportivas era Carlos Solé, que conheci na Rádio Sarandi desde minhas primeiras viagens a Montevideo.
Solé fora a grande voz uruguaia na conquista da Copa de 1950 e seu prestígio se rivalizava com o de Júlio Sosa o maior cantor de tangos da região platina depois de Carlos Gardel e que embora fosse ídolo na Argentina era uruguaio de nascimento.
Interessante esse aspecto: grandes ídolos argentinos nasceram no Uruguai ou em outros países vizinhos, como Leguisamo, chileno, o jóquei de maior prestígio em Palermo, como o músico e compositor Francisco Canaro, o autor de Madreselva (Madressilva) e condutor do mais famoso conjunto de tangos de sua época e ainda Gerardo Matos Rodrigues, autor do imortal Caminito, tango tão famoso que se tornou referência turística a local bastante visitado em Buenos Aires, o Camino Caminito.
Tanto o autor como a composição eram uruguaios legítimos.
Canaro, nome de rua em Buenos Aires nasceu no Uruguai, filho de italianos e só se naturalizou argentino no fim da vida.
E Carlos Gardel, o mais famoso intérprete original dessas canções teria nascido onde?
Uns dizem que foi em Tacuarembó, no Uruguai, outros que em Marselha, na França e que seu nome em realidade era Gardés e não Gardel, mas pela paternidade do mesmo os argentinos vão à luta.
Um dos argumentos que os argentinos usavam para mostrar que Gardel era filho do país foi o fato dele visitar e cantar para seus jogadores antes da final contra o Uruguai na Copa de 1930, a primeira delas.
Depois, soube-se que ele fizera o mesmo com os uruguaios e a discussão persiste até hoje.
O certo é que se estou falando de locutores-esportivos é bom lembrar um outro portenho que era muito ouvido no Brasil nos velhos tempos.
Nos anos 1940 quando o dial de um aparelho não tinha esse imenso número de emissoras dos dias atuais e que vai obrigar o governo brasileiro tomar medidas para transformar AMs em FMs o rádio do sul do continente penetrava no interior paulista com muito boa qualidade de som.
Assim é que me acostumei a ouvir transmissões por Fioravanti, da rádio Belgrano de Buenos Aires e lembro-me da frase dístico em que os locutores auxiliares depois de suas falas terminavam sempre com um “adelante, Fioravanti”.
Se comecei falando dos locutores oficiais em algumas emissoras do rádio estatal na Europa e vou mudando para uma espécie de homenagens a alguns nomes famosos na América do Sul não posso deixar de lado o chileno Gustavo Aguirre, “El negro Aguirre”, como o chamavam em Santiago.
Aguirre era um médico que também se dedicava ao grito de gol.
E ainda Sérgio Livingstone, goleiro da seleção chilena na Copa do Mundo de 1950, apenas que era o comentarista enquanto Aguirre era relator.
Alguns no Brasil marcaram época nesse período e me acostumei em minha infância a ouvir Rebelo Junior, o homem do gol inconfundível, Aurélio Campos, Jorge Cury, Antônio Cordeiro e, Oduvaldo Cozzi e alguns outros que me inclinaram para uma paixão profunda pela função.
O grande Pedro Luiz, de quem fui contemporâneo só vim a ouvir quando iniciei meus passos no rádio.
Mas, o primeiro locutor esportivo que deixou seu nome marcado por ter sido o único a narrar pela primeira vez uma Copa do Mundo foi o paulista Gagliano Neto, ao transmitir por uma cadeia de emissoras a Copa do Mundo de 1938.
Mesmo sendo uma transmissão sem influências governamentais (o Brasil já estava em plena ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas) Gagliano causou grande confusão no Rio de Janeiro quando da transmissão do cotejo semifinal entre Itália 2 Brasil 1.
Como a Itália venceu com um pênalti imensamente contestado pelos jogadores brasileiros e pela transmissão de Gagliano (Domingos da Guia em Piola) o locutor aventou a possibilidade esdrúxula ao final da transmissão de que a partida poderia ser anulada.
Isso causou alvoroço e quebra-quebra na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro quando os fatos foram esclarecidos e foi lida a nota oficial falando que de forma alguma o jogo poderia ser anulado e o Brasil estava fora da final.
Locutores oficiais como o italiano Carósio ou o português Arthur Agostinho o Brasil, felizmente, nunca teve.
Fonte: Rádioamantes